sábado, 1 de dezembro de 2012

A Emerência do Mar

(a Ronaldo Lima Lins)


                                  Entre
 os arbóreos gritos do fogo
                                  e os sussurros minerais do mar
                                     
                                  fico com esses
                                  últimos.
                                    
                                  Porque as águas têm ritmo,
             porque é em versos
                                   que as ondas
                                             cantam.

                                                         
                                  E é assim, como todos os versos,
                           que as ondas
                                    moldam
                      o mundo.

                                  Sem pressa.
                                  E sem retorno.


Santa Teresa, 30 de novembro de 2012



quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O Filho do Boto

Ele apareceu na água.
Ele apareceu na praia.
Ele apareceu do nada
e, do nada, ele me olhou.

Tinha um corpo grande e aberto
que estalava de tão bronze,
e os olhos tão sorridentes
que a boca quase sumia,

e uma pele tão molhada
que eu jamais discerniria
o que água, suor, orvalho,
ainda que usasse a língua.

Ele olhava para mim
e sua boca novamente
inútil, desnecessária,
pois seus olhos me beijavam

numa volúpia tão quente
que molhada fiquei eu
de orvalho, água, suor
ansiando por seu toque,

um toque que nunca veio.
Ele só ficou me olhando
até me fazer inteira
só com os olhos, só com os olhos!

Esperou tranquilamente
até que eu me refizesse,
depois disso, só me deu
uma piscada e partiu

(o que me surpreendia
era que, mesmo de costas,
por trás da sunga vermelha,
pude ver que ele sorria).

Ele apareceu na água
e para a água voltou.
Ele apareceu. A praia
nunca mais me abandonou.

sábado, 17 de novembro de 2012

Vozes


Sim, o que quereis de mim, oh musas?
Falai mais alto, que a TV está ligada.
Falai mais alto, ou chegai mais perto,
E lambei meus ouvidos enquanto sussurrais vossas tão belas maldições...
Musas, que dizeis? Que dizeis de mim, ou das árvores e dos campos,
Ou de todas as coisas que permeiam meu mundo?
Calíope, sólida e eloquente,
que tens a me dizer de meu futuro?
Clio, conhecedora de todos os segredos e de nenhum mistério,
qual o motivo de minha condenação?
Erato, doadora dos prazeres,
que sabes de meu amar e daqueles que me amam?

Ai, musas gregas, musas minhas, porque me torturais com essa Verdade distante

Se sabeis que não vos posso alcançar de onde me encontro?
Deixai-me em paz,
Ou deixai que eu vos abrace,
mas não me tentem assim...
Musas, que dizeis? Que dizeis de mim, ou dos homens e das crianças,
Ou de todas as coisas que meu mundo permeia?
Euterpe, magnífico deleite,
que notas o meu peito está a ouvir?
Melpômene, com seu riso desmedido,
por que choras por mim?
Polímnia, guardiã dos mistérios,
que grandezas sei?

Ai, porque viestes a essa hora, oh musas,

Se sabeis que não posso atende-las,
E o meu tempo está no fim?
O quarto está aceso, os carros passam ao longe,
E aproxima-se a hora do jantar...
Musas, que dizeis? Que dizeis de mim, que dizeis de mim,
Ou de todas as coisas que sou?
Tália, de riso florido,
qual é a graça?
Terpsícore, rodopiante e delicada, 
como faço para não cair?
Urânia, coroada de estrelas, 
onde estou, afinal?

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Oração


Permita-me admirar a escuridão
sutil e pressentida dos crepúsculos
antes que a luz dos postes me incendeie
e finja iluminar-me o chão. Permita

que eu possa ouvir o canto das cigaras
antes que as aberturas das novelas
invadam as calçadas a partir
das TVs que se espreitam nas janelas.

Permita-me cruzar esta cidade
(ao menos uma rua da cidade)
antes que esta cidade me consuma.

Permita-me viver antes que a vida
me atinja novamente e inevitável
me fazendo esquecer que a vida existe.

Insônia


Você se encontra neste quase-quarto
onde o tempo
cheira a fruta molhada
e todos os sons são negros.

Carros passam em algum lugar ao longe,
esparsos
omo as gotas na pia do banheiro,
como as moscas na pia da cozinha,

mas você não ouve.

Os espelhos
em cima dessas pias
não refletem em nada sua cama
pois,

embora haja espelhos em profusão em um sem número de pias espalhadas pela casa e por toda [a cidade

você e sua cama
não estão
defronte espelho
algum.

Assim, você não vê.

Algo em você quer dormir,
algo quer se levantar,
quer gozar
(sozinho)

mas o cansaço é tão grande...

Três da madrugada ainda.
A manhã se atrasou.

Faça um favor a si mesmo: durma
acorde
goze
morra

Faça alguma coisa mas saia dessa letargia insone,qualquer coisa, mas faça!

"não",
você não responde.

sábado, 3 de novembro de 2012

...e Então Há a Morte

(a Fernanda Drummond)

"With your kiss my life begins
You're spring to me, all things to me
Don't you know, you're life itself!"
(David Bowie, "Wild is the Wind",
na voz de Nina Simone)

A Morte
se instala no ventre
de uma casa com jardins lindíssimos
(e área para fumantes)
e canta versos como quem cozinha
com indescritível fineza.

Ela sorri, e não tenho medo.

Sei que a Morte é repleta do vigor primevo das bruxas,
que jamais nega seu amor ou sua fúria a ninguém.

Ela é bela, bela, muito bela,
a rainha dos ventos e das mudanças,
deusa oculta de todas as coisas vivas,
e uma esplendorosa mãe e irmã.

Segredo das coisas lindas,
sossego das coisas findas,
a Morte é o sabor mais raro de vida

que alguém pode experimentar,
E também o mais generoso,
Pois que será experimentado por todos,
ainda que uma única vez,
ainda que por toda a vida.

Ela tem o aroma do meu primeiro amor,
E um toque de orvalho seco.

Agora tenho medo.

Agora, é como se ela chegasse de repente
pedindo por lágrimas suas que eu havia combinado de lhe devolver
mas esquecera de separar,
e então tivesse que procurar correndo,
bagunçando todas as gavetas.

Tenho medo agora.
Mas ele não me paralisa. Ao contrário,
é por causa desse medo que eu sei
que devo ir.

E é por causa desse medo
Que eu vou sem medo.

Porque é o tipo de medo que se sente
Quando você percebe
Que conquistou o amor da sua vida.

domingo, 21 de outubro de 2012

Meu Peito Abril


Acordei-me repleto de ternura
de um modo ao meu padrão tão desigual
que é como despertasse-me a procura
d’um coração assim, tão portugal

que só capaz do pranto natural
proveniente de uma dor madura
a acariciar-nos, qual um vendaval
que sussurra visões de sepultura.

Em abril Portugal nos descobria
(E em outro abril se redescobriria
Em cantares de cravos, fé e mágoa)

Meu peito abril, ao me buscar sem tréguas,
Vê, no Atlântico, um lago envolto em léguas.
Hoje é no Rio que o Tejo deságua.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

A Noite (poema em 2 atos)


1.

A noite
não atravessa
meus olhos.

O que me atravessa os olhos são
a luz vermelha dos carros que sobram,
as faces cansadas de homens sérios
ao fim dos trabalhos diurnos,
a adrenalina em pó dos baladeiros de plantão,
a falta que faz um sol.

Nada disso é a noite.

A noite mesmo,
a noite de verdade,
aquela escuridão mais fria
que todas as estrelas escondem,
o silêncio por trás do techno e da chuva eventuais,
a certeza final da morte chegando,
essa bate e volta
como  o vento bate no rosto da gente
e segue seu rumo,
deixando apenas o frio
do lado de fora da pele.


2.

Se às vezes
a noite entra
em mim

é porque, muito de vez em quando
ela me atravessa a boca,
é porque respirar
é inevitável aos vivos
a ponto de nos esquecermos
da própria respiração,
como nos esquecemos da morte.

Da morte chegando.

Há noite mesmo,
noite de verdade,
na hora em que não se espera.
Quando o espanto é tamanho
que a boca não fecha.
quando o Espanto é tamanho
que certezas não há.
É a hora em que ela bate fundo
como o vento bate no rosto da gente
e segue seu rumo
deixando apenas o frio
no lado de dentro da pele.