quinta-feira, 30 de julho de 2009

Poema Etílico nº 2

(A Rafael Nunes)


A cachaça é choro de deuses. Seja
de tristeza, alegria, dor ou fúria,
esse pranto nos traz o despudor
e uma liberação da consciência

que nos permite, assim, compartilharmos
daquilo que eles têm de mais humano.
Por um instante, tornamo-nos eternos!
Porém o mesmo instante, após o instante,

vem cobrar sua conta, e nos lembrar
de que é com ele o nosso acordo. Eis
a maldição dos deuses, eis a nossa:

somos instante; eles, eternidade.
Porém, maior será nossa coragem
- que deuses beberão as nossas lágrimas?

sábado, 11 de julho de 2009

Trilogia Pessoana [inclui Reencarnação, Mãos desenlaçadas e Álvaro de Campos Revisited]

Oi, pessoal.

Talvez vocês conheçam algum desses poemas, ou todos eles, mas agora é a hora de colocá-los nos seus lugares, ou seja, juntos. Há um diálogo bem bacana entre os três textos do que eu resolvi chamar de Trilogia Pessoana, diálogo este que vai além do inevitável paralelo entre os heterônimos citados. Existe aqui uma diferença de ritmo que busca, entre outras coisas, acompanhar traços do espírito de cada heterônimo, drops de Fernando Pessoa e aspectos distintos do meu próprio trabalho. Há também pontos de unidade entre esses elementos todos.
Enfim, aproveitem.


Reencarnação


Uma cigana me disse uma vez
que eu era Alberto Caeiro
reencarnado.
"Mas ele é um heterônimo de Fernando Pessoa", repliquei.
"Ele nunca existiu".
A cigana, me perscrutando com suas bolas de cristal
(as de verdade, que ela guarda atrás dos óculos)
me respondeu: E você,
existe?

Não sei.

Sei apenas que há frias noites de uma chuva oblíqua
em que, mirando uma parede qualquer,
faço apenas isto. Existir,
excessivamente,
eu e a parede. Todo o resto,
Contemplar, Sofrer, me Indispôr,
perde sua relevância.

Uma cigana ne disse uma vez
que eu era Alberto Caeiro reencarnado.
Em noites como essa eu não acredito.



Mãos Desenlaçadas


Ricardo Reis morreu e hoje contemplo,
sozinha, o espetáculo do mundo,
mas Sofro ao ver que tudo é tão imundo
que não acho conforto em nenhum templo.

Existe, claro está que tudo Existe,
exceto quem não está mais ao meu lado.
Meu coração se encontra engaiolado,
e as rosas dos jardins são mero alpiste.

Gostava do seu plácido otimismo
eternamente à beira de um abismo.
Agora que estou só, não me contento

com isso que está aí. Tanta perfídia
no mundo me Indispõe, e é só o vento
quem seca o pranto dessa pobre Lídia.



Álvaro de Campos Revisited


Quem colou os cacos deste vaso?
Quem o encheu de flores? Será que não se Indispôs
com as sobras, os vazios? Agora esta cola o prende
com tal precariedade
que um mero empurrão o esfacelaria novamente,
em pedaços ainda menores,
e com mais louça, muito mais louça, até se tornar inevitável
que Existam vários vasos com os cacos de um.

Três, para ser exato. Um enorme,
selvagem, primitivo. Outro ordenado e imponente,
como vaso etrusco, ilustrado com deuses vingativos.
O último, bem pequeno, com forma e Sofrimento semelhantes
às do vaso original.

Ah, quem pode dizer, agora que foi tudo refeito, reformado, regurgitado,
qual é a face verdadeira desses vasos?
Seria a exterior, pintada e adornada,
cada uma à sua maneira?

Ou a face voltada para dentro, a face escura,
cujas teias de aranha só podemos Contemplar
se analizarmos os vasos com muito afinco,

e que o vaso, ele mesmo, nunca vê?

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Abrindo o baú Nº 1 [inclui Chuva]

Uau.

Arrumando meu quarto, minhas coisas, vejo que achei mais do que esperava. Encontro, em uma caixa de sapatos, coisas de há muito, muito tempo atrás, do que parece ser uma galáxia distante. Fotos, agendas, camisas de colégio com assinaturas da turma inteira (ainda fazem isso hoje em dia?), ingressos de filmes antigos... e meus primeiros textos! Falo de textos anteriores a qualquer pretensão séria em relação à minha obra, textos que nasceram das minhas primeiras audições de Caetano, da minha primeira descoberta da Língua.

Não resisto a partilhá-los com vocês. Claro, são textos de um adolescente que mal sabia o que é a poética (saberá ele hoje?), que engatinhava na miríade de possibilidades de expressão literária. Mas, creio eu, já tinha o que dizer.

Ah, sim, são textos do século passado.

Vamos ver?


Chuva


Está chovendo.
Meu corpo semi-permeável não deixa passar água
não, nada da água cristalina que poderia me purificar.
Mas a chuva passa
e meu coração fica nublado, cinza,
um cinza-escuro, carregado de dor sem razão
(ou talvez haja razão, mas a neblina dificulte a visão).
Mas não importa. Há dor. Isto é fato.

Um coração vazio, a própria presença do Vazio,
a falta de tudo o que importa no momento
obriga o poeta - eu - a pensar, sentir, ser alguma coisa
para poder escrever-se, interpretar-se
e o masoquismo então toma conta,
o paradoxo da angústia toma conta dele - de mim - e acontece
de o poeta ser mais cheio quando está mais vazio.

(Novembro/1998)