domingo, 31 de janeiro de 2010

- Você acredita em amizade entre homem e mulher?



Um banco de praça. Jocasta e Alberto. Dezoito, dezesseis. Amigos há dez.

- Claro, pô. A gente não conta?
- A gente era criança. Você ainda não era um homem, e eu...
- Tem razão. Falar nisso, você ficou uma gata, com todo o respeito.
- Que isso...

Não se via há uns três anos, desde que Jocasta fora sozinha à Europa, perseguindo seu sonho, sua identidade. Voltara, de supresa, há três dias. Uma gata, realmente. Agora conversavam.

- Onde é que você está querendo chegar, Jô?
- He, tinha me esquecido de como você me chamava assim...
- Acontece.
- Alberto... a gente sempre foi muito unido, não?
- É, a gente não prestava, lembra aquele dia em que a gente tava no lago...
- E aquele susto que você deu no vestiário feminino depois da aula de educação física...

Alberto era o mais calado, mas também o que mais aprontava.

- Você nunca achou que poderia haver algo mais entre a gente, Alberto?
- Foi você que disse, a gente era criança. Sem contar...
- Mesmo assim, acho que você tinha uma queda por mim, confessa!
- Que é isso...
-Alberto, eu vi as suas lágrimas no aeroporto. Não era choro de amigo.

Aquela tarde, três anos atrás, realmente havia sido a pior da vida de Alberto, por mais que ele não admitisse.

- Sabe, foi por isso que eu voltei, depois de todo esse tempo.
- Pra me chamar de chorão?
- Não, seu bobo. Por você. Por que você é a única pessoa que eu amo.

Jocasta e Alberto se olharam, primeiro com os olhos, depois com as mão e finalmente com suas bocas. Alberto, sem se importar com mais nada, deixando suas angústias e confusões para mais tarde. Jocasta, natural do Rio de Janeiro, nascida com o nome de José Augusto Lopes de Souza, experimentava pela primeira vez a felicidade.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Um dedinho de prosa [inclui Mikhail]

Então, pessoal. Um conto. Quaisquer comentários serão particularmente bem-vindos.



Mikhail



Todos já pensamos nisso.

Que todo esse mundo é uma farsa, que todas as coisas deixam de existir no momento em que deixamos de olhar para elas, que somos a única pessoa - a única coisa - de verdade no universo, que tudo aparenta existir unicamente para alimentar a ilusão de que não estamos sós.

Todos temos razão, mas nem tanto. É verdade que há apenas uma pessoa que realmente vive e que todo o resto existe ou não na medida em que é captado pelos sentidos dessa pessoa. Acontece que a única pessoa de verdade do universo não é você.

O nome dele é Mikhail Chekov e ele nasceu em uma pequena cidade da Rússia, ao sul de Moscou. Teve uma infância simples e boa, e sempre quis conhecer o mundo. desde pequeno trabalhou muito, não somente juntando dinheiro para a viagem, mas também para ajudar nas despesas de casa, pois sua família, como sua infância, era simples, e o fim da União Soviética não os ajudou.

Exceto pelo fato de ser a única pessoa de verdade do universo, sua vida era bem comum.

Mikhail conciliava seus trabalhos com um bom desempenho escolar. Chegou a cursar Arquitetura na Universidade de São Petersburgo, tendo sido o primeiro de sua cidade a cursar com sucesso um curso superior. Isso não quer dizer que ele seja inteligente o bastante para não conseguir ser feliz, apenas é um homem determinado.

Mikhail nunca pensou que pudesse ser a única pessoa de verdade do universo.

Depois de formado, Mikhail trabalhou durante cinco anos em uma empresa localizada em Oslo, na Noruega, que o contratara após uma bem-sucedida experiência de intercâmbio. Ganhava em Euros. Passado esse tempo, achou que já havia acumulado o sufiente para poder conhecer o resto do mundo. Fez suas malas, pediu demissão do emprego e partiu.

Não sei onde ele possa estar nesse momento.

Sei que um dia o verei. Um dia ele virá ao Brasil ou eu estarei em um outro país quando, sem qualquer aviso, lá estará ele. Provavelmente não irei reconhecê-lo. Mas estarei, onde quer que seja, recém-criado, com toda uma série de lembranças falsas de uma vida que eu nunca tive, pronto para interagir com ele como for preciso. Por um momento estarei vivo, mesmo que eu seja apenas um anônimo que passe por ele pela rua ou que ele só me veja em uma reportagem na TV passando atrás do reporter. Ou então Mikhail lerá este conto um dia, e só. Se for o caso, nunca existirei de verdade e mesmo esse fingimento terá sido apenas para que essa história fosse escrita. E nem mesmo escrita por mim.